Redação no Enem

A Universidade da Cotinha

As  provas do Enem voltam, a cada ano, e atraem holofotes de todos os tipos. Os  vestibulandos  ficam apreensivos quanto aos resultados, principalmente o de Redação —e estão certos. As estatísticas relativas a 2014 foram alarmantes: apenas duzentos e cinquenta estudantes obtiveram nota máxima (mil pontos) nessa prova e mais de quinhentos mil ficaram com zero. Seria truísmo, para explicar o desastre, afirmar que falta qualidade ao ensino brasileiro, que muitos jovens —até pós-graduados— leem e escrevem mal. Abandonemos o óbvio para analisar rapidamente a inegável relatividade que há na avaliação de textos, sobretudo se corrigidos segundo as determinações desse vestibular. Melhor admitir, de início, que de nada adianta a tentativa de estabelecer critérios e mais critérios, tentando mostrá-los como matematicamente corretos. Atribuir, com exatidão, um número a uma redação é impossível. E mais ainda pelo sistema Enem de correção, pois abre espaço excessivo para a subjetividade do corretor, por mais que ele se esforce para ser imparcial.         

Basta análise mais atenta para perceber que as cinco competências que, nesse exame, servem de parâmetro para a avaliação são falhas e inadequadas. Façam uma experiência: peguem um texto a que corretores  atribuíram mil pontos (o máximo possível) e nele introduzam diversas inadequações, de todos os tipos, mas apenas relativas à competência um (“domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa”), como “eles foi”, “nóis fez tudo serto”, “os probremas é inumeros”, “ a importansia dos meio de comunicassão são dimais pra noço paiz”. E outras semelhantes, mas não se esqueçam: devem ser relativas apenas à competência um. O que acontece? O valor cai para 800, no entanto o texto modificado seria rejeitado  por qualquer pessoa de bom senso. Certamente não basta uma redação estar apenas gramaticalmente correta. Sem dúvida, há outras exigências igualmente fundamentais. Entretanto, é necessário rever a formulação das competências e o valor atribuído a elas. Há ainda muitas outras impropriedades, como o fato de o candidato ter de, no curto espaço de uma conclusão, propor soluções para o problema ou os problemas apresentados no tema e ainda indicar os meios de implementá-las. Como consta no Manual do Candidato, página 22: “A proposta de intervenção precisa ser detalhada de modo a permitir ao leitor o julgamento sobre sua exequibilidade, portanto deve conter a exposição da intervenção sugerida e o detalhamento dos meios para realizá-la”. Observem a exigência de “detalhamento” tanto para apresentar soluções quanto para executá-las. E é imprescindível observar que geralmente são imbróglios que  nem os políticos nem as inteligências do país conseguem resolver. Todavia, espera-se que o jovem, tenso e extenuado mental e fisicamente (o Enem é verdadeira prova de resistência!), dê conta dessa “tarefa inglória”. Caso não realize a façanha, perderá duzentos pontos. Uma breve leitura dessa “fórmula”  mostrará a um bom leitor sua impropriedade. Percam um pouco de tempo tomando conhecimento desse modo de avaliar  e terão ideia do que está acontecendo. Por mais cálculos que estabeleçam, por mais discursos demagógicos que façam, os parâmetros  usados são questionáveis e resultam em notas injustas, muitas das vezes.

E os problemas não param por aí. Os  milhares de profissionais que corrigem milhões de textos, em aproximadamente dois meses, ganham pouquíssimo por texto corrigido. Por volta de três reais. Com certeza, alguns apressados já estão afirmando que não há nexo entre o que recebe um profissional e a qualidade do trabalho por ele executado. No entanto, quem quiser observar a situação de calamidade a que chegaram —juntos—  salário de professor e ensino no Brasil aceitará essa ligação inevitável. Há ainda outra questão: por mais competentes que sejam os corretores, é muito trabalho para pouco tempo e para poucos professores. Além dessa,  há, entre muitas outras, a seguinte questão. Suponhamos que dois vestibulandos escrevam redações equivalentes em qualidade. Uma delas, por sorte, é avaliada por dois corretores pouco exigentes que atribuem  ao texto notas não discrepantes e bem próximas de mil pontos. A outra, para azar de seu autor, passa por dois professores rigorosos que atribuem ao texto notas, também não discrepantes, mas  muito mais baixas. Pelas normas, em virtude de os valores serem próximos, não haverá, em nenhum dos casos, conferência dos resultados. Assim um estudante sairia beneficiado  e o outro prejudicado. Isso pode até significar que um conseguiria sua vaga na universidade e o outro não. É justo?

Na verdade, a avaliação por esse sistema agrava o fato primeiro e irrefutável: é quase impossível encontrar o número que corresponda exatamente a um texto. A valoração será sempre aproximada, logo é preciso agir com prudência, para diminuir o relativismo inerente ao processo. Contudo, resolver o problema banindo a redação é igualmente um mal, porque as escolas abandonariam o ensino de produção de textos e os estudantes perderiam ainda mais.

O que fazer? Primeiramente mudar o sistema das cinco competências e pesquisar outras formas de avaliar os textos, visando a diminuir disparidades. Além do mais, para amenizar os prejuízos sofridos, talvez fosse interessante substituir notas por conceitos, que corresponderiam a porcentagens a serem aplicadas sobre o total obtido na matriz de referência correspondente a "Linguagens, códigos e suas tecnologias", ou mesmo sobre o resultado final. Eles corresponderiam, por exemplo,  a acréscimos de mais 30% para o conceito  A; 20%  para B; 10%  para C. Ou a decréscimos de 30% para E; 20% para F; 10% para G. Mas o conceito  D não aumentaria nem diminuiria a nota conseguida. Desse modo, ficaria reduzida a margem de prejuízo ou benefício, indevidos, por causa da nota de redação. Certamente, o “detalhamento” e a viabilidade da sugestão ficam a critério dos especialistas em números e cálculos. Não conseguiríamos dar conta disso. Aliás,  só mesmo numa prova de Redação do Enem julgam plausível uma única pessoa “detalhar” soluções para graves problemas e “detalhar” meios de executá-las. Pensam, ainda, que a tarefa hercúlea é executável num exíguo espaço, as poucas linhas finais que servem à conclusão da redação. Não podemos ser descuidados —como estamos sendo há muito tempo!— com a Educação, portanto, para não agravar o descalabro, precisamos analisar, com muito cuidado, o que vem ocorrendo na atribuição de notas às redações dos candidatos a vagas nas universidades.

É ainda oportuno  não esquecer que a escrita de textos deve, obrigatoriamente, fazer parte da vida escolar, do ensino fundamental ao superior, ou mesmo depois. Se o aluno não escreve, tem de aprender —ou não poderá estudar. Aliás, quem não lê também não pode ser um estudante. E, uma vez que se ressuscitou “aquele” antigo e criticadíssimo vestibular nacional, por que não trazermos de volta um bem? Houve tempo em que pessoa alguma poderia concluir o curso primário, correspondente aos atuais primeiros anos do ensino fundamental, se não soubesse o indispensável: ler e escrever. Se esses primeiros  quatro ou cinco anos  servissem —pelo menos—   para isso, a Educação no país começaria a melhorar. E é preciso lembrar que, apesar de serem importantíssimas as contribuições eventuais, quem ensina é professor, assim como quem trata doentes é médico, quem cuida de animais é veterinário, quem faz móveis é marceneiro, quem resolve problemas dentários é odontologista, e assim por diante. Se desnecessária a profissionalização, para que universidades e... para que vestibular? É espantoso observar que, no Brasil de hoje, todos se mostram mais conhecedores dos problemas de ensino que os professores. Ou alguém está se calando, ou alguém está falando alto demais.

Devemos cuidar melhor dessa juventude tão prejudicada pelo precário sistema de ensino. A ela restou migalha ínfima de uma escola antiga, principalmente a pública, séria e eficiente, que obviamente deveria e deve sempre mudar para acompanhar novos tempos, porém evoluindo —e não se degradando. A falta de equanimidade nas notas atribuídas aos textos, no Enem, exacerba a deterioração do sistema educacional brasileiro. Além disso, parece oportuno reavaliar o Enem, considerado em conjunto. Urge analisar se o exame está diminuindo ou aumentando a injustiça a que, de modo geral, é submetido o estudante brasileiro

 

MÁRCIA CARRANO, escritora, doutora em Letras Vernáculas/Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é especialista em ensino de Redação pela PUC-Minas. Há mais de trinta e cinco anos, é professora de produção de textos.

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